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Na trama, duas atrizes se encontram em um teatro para uma reunião de elenco, quando são surpreendidas por um temporal. Enquanto esperam pelo diretor e o restante da equipe, deparam-se com as mulheres de Shakespeare, memórias femininas que perpassam os séculos. E esse encontro faz com que se voltem para si mesmas, revendo e questionando os próprios conflitos.
A peça reúne as personagens femininas de Shakespeare em um mosaico multifacetado e leve, alternando momentos dramáticos com humor, com textos que transitam entre a transgressão, a submissão, a ambição e o amor. Mulheres decididas e autoconfiantes, mulheres submissas, castas, doces, apaixonadas, ousadas, enigmáticas, loucas, santas, trágicas, cômicas, únicas compõem esse painel colorido e cuidadosamente selecionado.
A montagem é baseada em uma extensa pesquisa realizada pela atriz e bailarina Ana Guasque sobre as figuras femininas na obra de William Shakespeare (1564-1616). A encenação surgiu da necessidade de dar voz a essas personagens criadas há cinco séculos, uma época em que as mulheres não possuíam espaço na sociedade e sequer podiam subir ao palco – elas eram interpretadas por homens mais jovens que possuíam a voz mais aguda.
Vamos a entrevista?
😉Aprecie sem moderação!
Eunoteatro– Ana, de onde surgiu a vontade de pesquisar personagens femininas de Shakespeare?
Ana Guasque- A voz das mulheres, o empoderamento feminino e o espaço das mulheres no corpo social, é algo que está na minha pauta pessoal há alguns anos. Desde Sobre Ancas, espetáculo de dança criado em 2011, que venho desenvolvendo trabalhos de diferentes linguagens sobre mulheres. Escrevi um livro que se chama Victória, uma saga italiana no interior do Rio Grande que conta a história de uma matriarca que criou uma cidade no interior do Rio Grande do Sul. Temos grandes mulheres com grandes histórias, mas as mulheres sempre ficam relegadas a segundo plano, a coadjuvantes. Fiquei horrorizada em saber que até hoje não elevam as mulheres à categoria de melhores Maestrinas. Mas este é outro assunto.
A ideia de pesquisar sobre as personagens femininas de Shakespeare foi o desejo de dar voz para mulheres, aliado a um desejo de interpretar Shakespeare. Pensei, gostaria tanto de fazer uma peça do bardo, mas que peça fazer, quem são essas personagens femininas? E eu estava em Chiapetta naquele momento, interior do estado do Rio Grande do Sul para os lançamentos do meu livro Victória. Imbuída da força dessa matriarca, me veio essa ideia de reunir personagens femininas de Shakespeare em um único espetáculo, mas são realmente muitas, precisaria mais alguns espetáculos para incluir todas (risos). Então, naquela ocasião, eu pensei, quero fazer essa peça, quero reunir essas mulheres, quero dar voz a todas elas. Chega de ficarmos sempre relegadas a segundo plano, né? Depois, com as pesquisas, descobri que naquela época de Shakespeare as personagens femininas sequer podiam ser interpretadas por mulheres. E outra descoberta muito interessante: Shakespeare, naquela época conseguia ser mais libertário do que hoje. No estudo, me deparei com traduções extremamente conservadoras, algumas até mudavam a ideia do texto para ficar mais conservador ainda.
Então a vontade nasceu daí, desse dupla de desejos, tanto de interpretar Shakespeare quanto de dar voz às mulheres criadas por este grandioso dramaturgo. E a Thelma Guedes, querida do meu coração, topou entrar nessa aventura e escreveu este texto lindo que tivemos a honra de apresentar com a direção do nosso querido Luke Dixon, maestro da encenação, onde tive o presente de contracenar com a Suzy Rêgo. E esperamos dar continuidade às nossas apresentações agora no pós pandemia.
Eunoteatro- Foi nas comédias que o autor deu maior destaque às mulheres em sua obra. A escolha em trabalhar a comédia em “Mulheres de Shakespeare” está relacionada a isto?
Ana Guasque- A peça transita muito. Nós classificamos como comédia porque é preciso colocar um gênero encaixotado pra divulgação, mas Mulheres de Shakespeare transita muito pela comédia, pela tragédia, pelo drama, em alguns momentos ganha até ares documentais, trazendo fatos históricos, e é uma peça que conduz o público a diferentes sentimentos e emoções. É uma peça que é uma pérola para o exercício de trabalho de atriz. É calcada nas interpretações. Então, as vezes que acaba puxando mais para a comédia aconteceu por características do jogo cênico que nasceu entre a Suzy e eu. Em alguns momentos a autora faz quebras específicas que conduzem à comicidade, mas outros momentos surgiram do jogo entre as atrizes. Mas, o melhor de tudo é poder levar o público a experimentar diferentes sentimentos. É tão bom ver as pessoas com lágrimas nos olhos e
sorriso no rosto nos dizendo: – eu chorei e ri, depois chorei de novo, e ri muito, e chorei mais um pouco. Isso não tem preço. Acho que o melhor de ser atriz é poder fazer isso, chamar o público para experimentar sentimentos. Quando experimentamos sentimentos nos encontramos com a nossa humanidade, lembramos que somos capazes de sentir, e então conseguimos nos desprender um pouco da forma mecânica de se viver e relacionar com a vida.
Eunoteatro- A obra de Shakespeare está repleta de mulheres corajosas, fortes e que questionam a estrutura social. Imagino que a escolha de quais estariam em cena tenha sido um trabalho complexo. Como foi?
Ana Guasque- Foi difícil mesmo, mas entregamos esta escolha inteiramente ao critério da Thelma Guedes. Entreguei a pesquisa inteira nas mãos delas. E a Thelminha fez excelentes escolhas, trazendo tanto reflexões sociais como reflexões pessoais que nos representam.
Eunoteatro- O dramaturgo sugere pelas suas personagens que o papel social da mulher é meramente cultural, um comportamento aprendido. Como a peça “Mulheres de Shakespeare” discute o papel social da mulher contemporânea?
Ana Guasque- É justamente nisso que tento mexer há tantos anos. A peça discute isso na medida em que coloca estas mulheres como protagonistas de sua própria história, dá a elas uma vida própria independente do masculino. E pelo texto e interpretação também busca desconstruir um pouco do encaixotamento binário constante. Falamos sobre as mulheres criadas por Shakespeare que se vestiam de homens para poder ter acesso a outros lugares da sociedade, e eu me visto de Romeu para contracenar com a Julieta de Suzy. Em alguma medida buscamos o caminho inverso da época de Shakespeare. Lá as personagens femininas eram interpretadas por homens, aqui, as personagens femininas são interpretadas por mulheres, que ainda interpretam a masculina. O teatro nos permite muitas camadas de compreensão. Isso é muito legal. Mas nosso propósito principal era justamente entregar o protagonismo para estas mulheres e assim também nos apropriar do nosso protagonismo enquanto mulheres, brasileiras, que vivem em um país altamente machista.
Faço um aparte, outro dia fiz um curso da escola de magistratura sobre a igualdade de gênero e enfrentamento à violência contra as mulheres, e fiquei horrorizada de saber que o Brasil é considerado o 5º país do mundo mais violento pra um mulher viver. Vivemos em um país altamente machista, conservador, patriarcal e violento, onde ainda hoje se coloca a mulher – ou em lugar de objetificação, ou em lugar da esposa recatada. Onde não se repita um “não” dito por uma mulher – haja vista a imensa quantidade de estupros, de feminicídio. É muito, muito complicado.
As mulheres seguirão na minha pauta. Nosso propósito é dar cada vez mais voz e protagonismo para as mulheres.
Eunoteatro- O espetáculo tem planos de reestreia agora que os teatros estão retomando as atividades presenciais?
Ana Guasque- Por enquanto ainda não. É um espetáculo um pouco caro de colocar em cena. Mas estamos nos preparando, inscrevendo projetos e buscando novos patrocínios para seguirmos com novas apresentações em breve. Infelizmente a pandemia nos atrapalhou muito. Mas também serviu como um período de recolhimento, de novas percepções e entendimento que não precisamos fazer as coisas à la louca, com desespero, embora sim, estejamos “desesperados” para levar este espetáculo delicioso para o público.
Por enquanto, estou concentrada em viabilizar novos projetos e viabilizar também novas temporadas das Mulheres (de Shakespeare), estou em montagem do meu curta-metragem feito durante o isolamento social da pandemia, que se chama “Voz Oculta”. Vem coisas muito boas por aí.
Siga Ana Guasque no Instragram: @anaguasque
Eunoteatro- As mulheres de Shakespeare são mulheres que trazem estereótipos importantes da submissão da mulher pelo patriarcado. Como você vê a mulher na atualidade?
Suzy Rêgo- Como incurável otimista, vejo com muita alegria o quanto temos conquistado. Grandes mulheres em posições de importância mundial, grandes ativistas, militantes, artistas, atletas, educadoras, empreendedoras, cientistas, governantes (merecemos a possibilidade de mais mulheres na política nacional), etc.
Há muito ainda a ser feito, mas vejo avanço, vejo progresso, veio a esperança de educação e orientação para nossas jovens. (Sei e lamento ainda números alarmantes de violência contra a mulher, feminicídio e crimes de abuso de toda a natureza, no entanto acredito nas campanhas de informação e conscientização para a mudança desses quadros tão avassaladores. Essas mudanças virão com o – cada vez maior e melhor – empoderamento feminino.)
Eunoteatro- Como foi revisitar personagens clássicas sem perder as referências e manter o interesse para um público diverso?
Suzy Rêgo- Quem assiste a peça “Mulheres De Shakespeare”, da Thelma Guedes, sob direção do inglês Luke Dixon, percebe desde o começo que os clássicos surgem em meio a diálogos das personagens. As cenas dos clássicos ilustram o conflito de geração entre a atriz jovem iniciante e a atriz madura experiente. É uma comédia, esse encontro inusitado entre duas intérpretes tão diferentes, duas mulheres com trajetórias diversas no cenário artístico, as divergências, os gatilhos de cada uma delas, os anseios e ilusões, os sonhos e choques de realidade.
O público sempre mergulha nessa aventura e se identifica com muitas situações.
Eunoteatro- Shakespeare escreve numa época em que as mulheres estavam reduzidas a objetos do patriarcado. A situação era tal que as personagens femininas eram interpretadas por homens. De lá pra cá ganhamos os palcos e alguns direitos. Mesmo assim sabemos que ainda há muito que conquistar, inclusive na arte. Quais as dificuldades a mulher contemporânea enfrenta para estar no teatro?
Suzy Rêgo- Desde antes da pandemia do Covid 19, a arte e cultura desse país sofre abalos violentos, descasos, desprezos, desrespeitos com patrimônios públicos: teatros, orquestras, ballets, museus, festivais, editais, concursos, etc. Nem Ministério da Cultura existe mais, há uma Secretaria Especial de Cultura que nem ao menos dialoga com a classe artística. As dificuldades, independentemente de gênero, são as mesmas: falta de investimento, falta de apoio às produções teatrais, falta de vontade política e de investimentos. Falta de Educação.
Eunoteatro- Alguns críticos consideram Shakespeare feminista por retratar a capacidade da mulher de superar a sua própria condição social. Você considera que o teatro tem se esforçado, assim como o dramaturgo inglês, para trazer à luz questões sobre mulheres?
Suzy Rêgo- A arte imita a vida e vice-versa. O teatro reflete a natureza humana; questiona, denuncia, sugere, provoca, incita, alerta, insinua, transcende, indigna, diverte e, sobretudo, emociona e propõe reflexões. O teatro desde sempre traz à luz questões sobre mulheres e cada vez mais merecemos ampliar e trazer também à luz questões LGBTQIA+.
Eunoteatro- Suzy, você acha que as mulheres que você representou seriam consideradas ainda hoje mulheres “transgressoras”?
Suzy Rêgo- Transformadoras.
Siga Suzy Rêgo o Instagram: @suzyrego
Eunoteatro– Ana e Suzy, para nós é uma felicidade imensa tê-las aqui no @eunoteatro. Muito obrigada por disporem do tempo de vocês para essa entrevista. Sejam muito bem vindas e até a próxima!
Entrevista por: Thamiris Dias
Siga Thamiris Dias no Instagram: @thamiris.dias