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O FilteBahia vem se destacando no cenário nacional e internacional pelo seu alto conceito e valor de formação, atrelando a prática cênica com o pensamento sobre o teatro, juntando os esforços de instituições artísticas e educacionais e publicando obras de relevância no cenário latino-americano.
Com a missão de celebrar a polinização de processos artísticos e criativos intensos diante da pandemia, o FilteBahia 2021 – Festival Latino-Americano de Teatro da Bahia teve sua edição online e gratuita em novembro de 2021, com transmissão pelo YouTube Filte Bahia. O evento foi realizado pelo Coletivo Oco Teatro Laboratório e reuniu artistas de 18 grupos nacionais e internacionais, com o apoio financeiro do Governo do Estado, através do Fundo de Cultura, Secretaria da Fazenda e Secretaria de Cultura da Bahia. Os críticos Dodi Leal, Lorenna Rocha e Valmir Santos irão acompanhar a programação a fim de produzir um material reflexivo sobre o festival.
Entre os artistas e grupos nacionais convidados estavam Terceira Margem (BA); Roberta Nascimento (BA/SP); Coletivo DUO (BA); Cia Baiana de Teatro Brasileiro (BA); Cia de Teatro Avatar/Núcleo Caatinga (BA); Teatro Popular de Ilhéus (BA); Marconi Bispo e Emisandra Helena (PE); Teatro do Concreto (DF); Grupo Erosão (RJ); Cia Lumiato Teatro de Formas Animadas (DF); Companhia de Teatro Íntimo (RJ); Outra Margem/ Andrea Duarte; Andreia Pires (CE); e Ateliê 23 (AM).
Já as atrações internacionais eram Any Luz Correa Orozco (Colômbia), Pedro Vilela (Brasil/ Portugal), Cia Circolando (Portugal) e uma co-produção entreVendimia Teatro (Colômbia) e Núcleo 2 Coletivo Teatro (Brasil).
A programação do FilteBahia 2021foi composta ainda pela 9ª edição do CICBAHIA – Colóquio Internacional Cênico da Bahia, o NORTEA – Núcleo de Laboratórios Teatrais do Nordeste e quatro oficinas e laboratórios de intercâmbio.
“Em meio ao distanciamento e aos desafios que se colocam sobre o momento artístico e histórico que vivemos no Brasil, qual o papel de um festival de arte? Nós queremos valorizar os esforços de tantos artistas que fizeram do criar um modo de vida e de contribuir para que o mundo subjetivo pudesse emergir como pequenas faíscas no enfrentamento da aridez de um país assolado pela peste”, resume Luis Alonso-Aude, diretor artístico do festival.
☝Vamos a entrevista?
😉Aprecie sem moderação!
Eunoteatro- Luis, o contexto pandêmico que vivemos nos fez pensar maneiras diferentes de trabalho, de socialização e de arte, ficamos mais online e usamos as ferramentas virtuais para estreitar o convívio. Quais são os ganhos e as perdas para o teatro?
Luis Alonso-Aude: Primeiro precisaríamos pensar profundamente o que é convívio e como isto pode estar associado ao meio virtual gerado pela internet. Há uma coisa que fica clara para mim. A internet, o virtual, o teatro e o convívio são produtos do corpo-humano-vivo, quer dizer, de nós, nós criamos tudo isso e tudo isso existe porque nós existimos, então, o virtual não é um espaço alheio, não se é alienado por estar no meio virtual, mas isso não significa que estejamos em convívio como o conhecemos. Talvez devamos diferenciar entre convívio corporal e convívio virtual, ainda assim não tenho certeza disso aí.
Só acho apressado, muitos pesquisadores, já categorizarem e começarem a gerar sistemas. Temos uma necessidade de sistemas. Nossos corpos o tempo todo querem reproduzir sistemas, de fato, reproduzimos absolutamente, para tudo, o nosso sistema de órgãos, instaurado no nosso corpo. É como se nós, o tempo todo, tivéssemos a necessidade de gerar cada vez mais sistemas, projetando o nós que somos para o exterior de nós. Assim acontece agora e continuará acontecendo. Sobretudo conosco, pesquisadores, vemos uma pérola, ou algo que parece uma pérola e vamos afoitos ao presunto ‘descobrimento’. Já ouvi os termos ‘Teatro virtual’, a ‘Nona Arte’, ‘Isso aí veio para ficar’, mas de uma maneira tão superficial… Só por esnobismo. Mas preciso considerar que algumas pesquisadoras estão trabalhando a fundo nessa relação do virtual e o teatro.
Desculpa a introdução tão longa à resposta da sua pergunta. Mas para não parecer superficial e como sou um pesquisador -como artista e como acadêmico-, considero que não existe teatro virtual nesse lugar onde querem situar. Porque por outro lado me assalta a questão de se quebrarmos todas as fronteiras que delimitam as nossas manifestações artísticas, assim sucessivamente quebraríamos todas as fronteiras das categorias e de fato então se tudo é teatro, nada é teatro, para ser mais comum ainda: se tudo é tudo, nada é nada (rsrsrs).
Acredito que o teatro não perde nada. O teatro é uma expressão da realidade, é uma junção de corpos (e não falo somente do corpo-humano-vivo) falo de todos os corpos materiais que habitam e fazem parte da construção teatral, esses corpos pertencem ao socius, então são sociedade por excelência e para existir teatro sempre há de haver um outro que convive.
Sendo assim o teatro ganha e muito, porque o fato dele próprio ser sociedade em um outro nível de expressão, ele sempre tem todas suas portas abertas para assumir absolutamente todas as transformações sociais, incluindo as outras manifestações artísticas. Assim será com a internet e o meio virtual. Mas tenhamos claro uma coisa, algo deve acontecer a uma grande parcela da sociedade que somente vive no meio virtual, haverá uma transformação radical nesse sentido, pois é um outro universo. Se o teatro entrar nesse lugar ele não estará assumindo em si novas categorias ou ferramentas dentro do seu sistema de representações que venha discutir e dialogar com o virtual, ele vai ser o próprio sistema virtual. Isso é contraditório por um lado, por outro é curioso. Isso me faz pensar no seguinte: -O teatro não é a própria vida. Por que queremos que ele seja o próprio virtual? O que estou querendo compreender aqui é o seguinte, qual a necessidade de pegar o teatro e fazer dele uma outra coisa que não é teatro? O que está acontecendo está muito mais próximo do audiovisual, no geral, está mais próximo do filme, do documentário, do cinema. Eu não vejo pesquisador algum debatendo se isso aí é audiovisual ou não, porque de fato é, no entanto, o teatro é tão potente enquanto conquistador de novas informações que parece como se ele também fosse virtual.
Para finalizar a minha resposta (rsrsrs) a Pandemia nos obrigou a canalizar as nossas vontades criadoras através de um meio virtual e o que geramos foi Performances Audiovisuais, para mim esse é o nome que fica mais próximo do ato de categorizar o que vem acontecendo. Performances Audiovisuais geradas por criadores de teatro, dança e performance. O resto é obra de arte gravada, como sempre aconteceu.
Sempre devemos pensar da seguinte forma: Somos várias gerações que vivemos sem internet quase a metade das nossas vidas e tem aí novas gerações que nasceram com esse universo. Basta o passar dos anos para ver o que acontece.
Eunoteatro- Ainda falando sobre as tecnologias, você acha que realizar o FilteBahia de forma virtual tem maior adesão do público? Traz mais visibilidade ao Festival, já que pessoas de diferentes lugares podem participar?
Luis Alonso-Aude: Aconteceu o fenômeno da obrigatoriedade à qual fomos submetidos durante a Pandemia, então as pessoas ficaram saturadas de muita relação com os dispositivos, TV, celular, rádio, computador e todas as plataformas que abrigam seriados, filmes, documentários, etc. A vida é um constante equilíbrio, acredito que tem de passar a Pandemia definitivamente, retomar as atividades cotidianas aderindo novas atividades e formas de nos relacionar e veremos como será necessário encontrar um novo equilíbrio.
Nessa busca do equilíbrio acredito que está a minha resposta à sua segunda pergunta. Há uma falsa ideia de que pela rapidez que a internet proporciona e a multiplicidade de territórios que alcança ao mesmo tempo, que o alcance do festival é maior. Se for ver em proporção de público presente e de cliques na tela dos dispositivos posso te dizer que não. Presencialmente, na cidade de Salvador, nós tínhamos as salas de teatro cheias, às vezes 11 espaços em um único dia funcionando em diversos horários e às vezes simultâneos e quase todos, por não dizer todos, estavam lotados. Isso significa que, sem contar as propostas de teatro de rua, nós teríamos mínimo, somando teatros pequenos, dois mil pessoas conectadas ao festival diariamente. No meio virtual, não conseguimos essa cifra nem sonhando. É que não percebemos que no meio virtual nós não conseguimos sempre reproduzir o que acontece no presencial. Se você promover um show de uma cantora famosa daqui de Salvador, você vai ter a Concha Acústica ou a Fonte Nova lotada, com milhares de pessoas, se você promove esse mesmo show na internet, proporcionalmente você terá milhões de pessoas assistindo. Porque a questão não reside em se é virtual ou presencial, é em quanto se investiu, durante os anos, em acesso e valoração das artes e não no entretenimento.
Por outro lado, o meio virtual dá a impressão de que podemos realizar diversas tarefas ao mesmo tempo. Nesta semana eu estava convidado em 3 eventos internacionais ao mesmo tempo, isso é uma loucura para nós, a gente não é três, a gente é um. É isso será indissolúvel. Só se com o passar dos séculos consigamos desenvolver condições corporais que nos permitam dividir em profundidade (e não superficialmente) a atenção entre vários eventos. No final do dia a sensação é de esgotamento total e ainda sente que você não produziu nada de concreto…. Essa é a sensação.
O público está muito fluido, dá um clique e não se interessa com o que está desacostumado. A maioria das pessoas só querem ouvir discursos prontos daquilo no qual elas acreditam e isso é terrível. Isso não tem nada a ver com Arte. Não há vontade de lidar com o contraditório, com os pensamentos, com a nossa subjetividade, assim fica difícil um público maior. Aí as pessoas, nesse universo ‘líquido’ e na prática constante do esvaziamento, abandonam a página com muita facilidade.
Também devemos pensar o acesso. Tenhamos em conta a pobreza no Brasil. A falsa ideia de que todo mundo tem um celular e tem dados para assistir teatro. Observa como tudo volta ao mesmo lugar do presencial. Nem todo mundo pode estar no teatro.
Visibilidade? Aumenta sim, mas acredito que esvazia com a mesma rapidez com que é disseminada na internet.
Eunoteatro- Você está na coordenação do NORTEA (Núcleo de Laboratórios Teatrais do Nordeste), um grupo dedicado a criar discussões sobre os processos artísticos de grupos teatrais do Nordeste. Quais os objetivos dessas pesquisas? Elas também se relacionam com os estudos de grupos fora do estado?
Luis Alonso-Aude: Há 18 anos eu levantei um questionamento: Por que a produção teatral do Nordeste é tão rica e no Brasil só ouço falar de nomes de artistas de um eixo entorno de São Paulo? Por que se o Brasil é tão plural a história do teatro brasileiro parece que mora nesse eixo? Como sempre, tudo relacionado ao poder econômico. Precisávamos ajudar a dar uma guinada nisso. Depois percebi que outros estados estavam também instaurados nessa ponte de produções que ficavam nos circuitos dos festivais, estados como Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Então, por que as produções nordestinas são tão pouco valorizadas no resto do país? Aí surgiu a ideia de criar no FilteBahia um espaço para esse Núcleo de Laboratórios Teatrais do Nordeste -Nortea- onde são debatidos processos, procedimentos e técnicas de construção da obra de arte dos grupos do nordeste. Já tivemos nove grupos representando cada estado, no modo presencial.
O Nortea nos trouxe crescimento nesse meio do intercâmbio, reconhecer que somos e existimos enquanto produtores de arte, de teatro e potencializar isso para o resto do país, convidando aos nossos encontros não somente os grupos nordestinos, mas artistas e grupos representativos do país e do mundo, convidados ao Festival.
Eunoteatro- Além de diretor, você se dedica a pesquisa teatral nacional e internacional e tem um currículo extenso nesta área. Como enxerga a situação atual do país em relação à cultura?
Luis Alonso-Aude: Essa situação não é atual. Aliás, atualmente não há situação alguma, se me permite a ironia. A questão é que esta minha opinião não vem somente de uma experiência com meu estado, vem do conhecimento das experiências de vários estados, com raras exceções, a maior parte do país sofre da mesma ausência de cuidado com os artistas. Anos atrás se apostou na política de editais, eu fui contra, em vários momentos, me posicionando em embate forte contra os editais como única política pública. Passaram os anos e não foi construída uma política sólida que segurasse os artistas e dera o respeito e a dignidade que precisamos para viver de arte. O artista de teatro no Brasil é nada para a maioria da sociedade, sabe? As pessoas perguntam a que você se dedica, você responde: faço teatro. A pessoa pergunta de novo, sim, eu fazia teatro na escola, mas você se dedica ao que, trabalha com que? É humilhante, um trabalho tão difícil, tão elaborado, tão poderoso, tão trabalhoso, a maioria da população não sabe do seu valor nem como produto finalizado nem como procedimento, lavoura, trabalho braçal. E isso é uma construção, aliás a partir de uma desconstrução através dos anos.
A situação atual é a penúria, só que longe de pensarmos no passado a gente tem de pensar no futuro, como saímos dessa. Não pode ser mais criando editais como política pública que o que faz é isentar os políticos da sua verdadeira responsabilidade com a arte, passando para as comissões de avaliação a responsabilidade da seleção, botando para brigar entre os artistas e ainda respondendo na tua cara: Foi democrático, aguarda o próximo edital. É sarcástico e debochado, por não dizer antidemocrático, totalmente antidemocrática a prática dos editais como única via de cuidado das artes no país.
Precisamos de leis rigorosas que protejam os artistas e que não permitam que qualquer governo de turno, de qualquer bandeira ou ideologia, possa vir derrubar. Isso que é ajudar a construir um país mais forte em arte. Veja Argentina, Chile, Uruguai, tem gerado políticas mais interessantes, são os nossos vizinhos. Aqui continuamos a pensar o apoio dos artistas com migalhas onde ainda temos de responder pelo dinheiro que usamos com um tribunal de contas acima das nossas cabeças dispostos a te colocar na justiça por 200 reais… e assim. É uma loucura.
Eunoteatro- Infelizmente o teatro nacional está bastante focado no eixo Rio-São Paulo. O que está fora muitas vezes não é visto, quiçá conhecido. Gostaria de saber sua opinião e também como podemos mudar essa realidade?
Luis Alonso-Aude: Acredito que há que mudar o olhar. Teve ocasiões nas quais eu vi o exercício da crítica de um olhar paulistano sobre uma produção nordestina, de maneira totalmente errada. Mas isso é só um exemplo do passado, o que não quer dizer que ainda não possa acontecer.
Precisamos sair de uma série de preconceitos, primeiramente o preconceito regional, pois ele determina e muito na recepção da informação de companhias que tem seu centro no Nordeste. Sair da regionalização, estamos atrasados nisso, sobretudo na atualidade onde a internet quebrou essas fronteiras. Seguidamente precisamos seguir produzindo, intercambiando e internacionalizando os nossos produtos, valorizando assim e visibilizando o que fazemos por cá. Finalmente, parar de pensar que arte só é bom onde reside o poder econômico. Esse pensamento também é parte de uma herança colonial. Não existe teatro pobre nesse sentido. Todo teatro é rico, porque ele traz em si a vida condensada em minutos de convívio com o espectador.
Eunoteatro- Conte-nos um pouco de como foi o processo de direção artística do Festival Latino-Americano de Teatro da Bahia.
Luis Alonso-Aude: Foi diferente, mas divertido. Foi belo, estar aberto a uma espécie de festival no qual você não acredita no seu formato porque acredito no teatro da presença. Foi lindo poder dialogar com pensamentos curatoriais que divergem, é a única via do crescimento. Acredito que daqui saio mais forte e querendo fazer mais teatro e mais festivais em trânsitos fluidos e constantes entre o virtual e o presencial, talvez no presentual (rsrsrs) só para quebrar a seriedade e trazer um neologismo meu.
Sempre me emociono muito quando começa e quando acaba, porque dá um trabalho do caralho organizar essa maquinaria toda. Este ano sentimos, todos, muitas saudades dos técnicos, dos iluminadores, dos motoristas, da limpeza, dos camarins, do corre-corre, do suor, das brigas, das reuniões com cafezinho, ou do cafezinho das reuniões (rsrsrs). Dos bate-papo após as apresentações, banhos de mar, risada e fumo! (hum) Nossa, sentimos tanta saudade disso! Valorizamos mais isso! Sabe!?
Agora só basta esperar, aguardar o próximo ano, onde terão passado já três. Nossa…! É muito tempo para aguardar ao retorno dos abraços.
Eunoteatro- Luis, agradecemos por dispor de seu tempo para essa entrevista. Estamos muito felizes em tê-lo aqui no @eunoteatro. Seja muito bem vindo e até a próxima!
Siga Luis Alonso-Aude no Instagram: @alonsoaude
Entrevista por: Thamires Dias @thamiris.dias_