Entrevista Paulo Atto

Entrevista Paulo Atto

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Livro mostra trajetória do teatro e a censura na Bahia dos anos 80

Paulo Atto lança Atto em 3 Atos & Memórias da Censura com peças que se relacionam com o momento enfrentado pelo Brasil na ocasião. A publicação apresenta materiais da cena teatral como reportagens, cartazes, programas, além de revelar artifícios usados pelo artista para driblar a censura. Outra relíquia é uma carta que Paulo Autran escreveu para Atto em 1987, algo que selou uma amizade de anos.

Em Salvador (BA), na década de 1980, o dramaturgo Paulo Atto escreveu uma trilogia de espetáculos (A Confissão; As Máquinas ou A Tragédia em Desenvolvimento; e Até Delirar / O Banquete) que estava profundamente ligada ao período que o Brasil vivia. O país estava passando pela repressão da ditadura militar e indo em direção à uma transição democrática que culminou na Constituição Federal de 1988. Os textos dos espetáculos e uma série de memórias, registros de imprensa, fotos, cartazes, convites, folhetos e panfletos, toda efervescência da época, está no livro Atto em 3 Atos & Memórias da Censura (298 páginas, Editora do Teatro Popular de Ilhéus).

A publicação é como uma espécie de inventário emotivo, histórico, dramatúrgico e artístico daqueles anos em que um grupo de atores e artistas vivenciaram a sua produção. A obra recorre à trilogia inicial do autor para recuperar e contribuir com a história do teatro de grupo na Bahia. Apesar do processo lento e gradual de abertura, o teatro enfrentava a censura.

Passados mais de 30 anos, os espetáculos se mantêm pungentes, a obra é um testemunho com as origens do dramaturgo e o nascimento de seu grupo de teatro, a Cia de Teatro Avatar. A partir dos anos 1990, o coletivo realizou sucessivas turnês internacionais e participações em festivais. A proposta é levar o leitor para a atmosfera vivida por Paulo Atto com um memorial afetivo repleto de histórias de bastidores, anotações de cena, reprodução dos programas, anotações da direção, pequenas histórias, cartas, observações sobre ensaios.

O livro traz curiosidades como uma hilária situação envolvendo maneiras para driblar a censura e evitar cortes no espetáculo. Outra relíquia é uma carta que Paulo Autran escreveu para Atto em 1987 sobre o texto de A Confissão. A partir desta correspondência, nasceu uma relação que perduraria por muitos anos de carinho, amizade e admiração entre os dois.

A publicação foi ganhadora do Prêmio das Artes Jorge Portugal e tem apoio financeiro do Estado da Bahia através da Secretaria de Cultura e da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Programa Aldir Blanc Bahia) via Lei Aldir Blanc, direcionada pela Secretaria Especial da Cultural do Ministério do Turismo, Governo Federal.

Celebrando os 40 anos de carreira, Atto está em um momento frutífero. Recentemente, o autor venceu o Selo Literário João Ubaldo Ribeiro na categoria de dramaturgia com a peça A Travessia do Grão Profundo. A premiação tem como finalidade o fortalecimento do campo da literatura baiana. Outro projeto em vista é um livro sobre sua relação com Caio Fernando de Abreu (1948 -1996), que iniciou a partir da adaptação teatral do livro Morangos Mofados em 1988.

Paulo Atto | Foto Divulgação

Eunoteatro- Paulo Atto, é um grande prazer entrevistá-lo. Quero começar falando um pouco do cuidado que teve em guardar memórias de 30 anos atrás em forma de materiais, recortes, textos e documentos que hoje compõe o seu livro recém lançado Atto em 3 Atos & Memórias da Censura. Fiquei curiosa se a intenção sempre foi transformá-los em livro ou se os guardou como reminiscências?

Paulo Atto- O prazer é todo meu. Prazer e uma alegria participar desta iniciativa maravilhosa do seu site, o qual já acompanho também pelo Instagram. Primeiro devo confessar que esta “mania de guardar as coisas” é uma característica minha, não somente nas questões profissionais como também na esfera pessoal. Livros, cartões, bilhetes, postais, cartas, recortes de jornais, programas de espetáculos, convites. Esta memória afetiva que me oferecem estes objetos displicentes é algo muito meu. A memória é também feita destas minudências. Apenas agora percebo que esta característica está sendo muito positiva para que possa reconstruir a minha trajetória, de quase 40 anos, em formato de livros. E gosto da surpresa que às vezes causo nas pessoas quando sabem, por exemplo, que um bilhete escrito há 33 anos está guardado comigo como uma relíquia. No caso desta obra, que revela os primórdios de minha história como dramaturgo e diretor, foi fundamental ter estes materiais em mãos. A ideia deste livro se insere num projeto editorial mais amplo de registro de todo o meu trabalho. Inicialmente queríamos editar todo o material até 2023 quando completo 40 anos de teatro, o que acho difícil no momento, porém vou seguir no trabalho de publicação de todos os textos, projetos e montagens. Não foi intencional construir este arquivo, mas está sendo providencial neste momento.

Eunoteatro- É impossível não remeter o atual cenário político no Brasil ao retratado no seu livro. Como você vê a censura no teatro hoje comparado àquela época denunciada no seu livro?

Paulo Atto- Há uma diferença fundamental quando nós pensamos na Censura entre as décadas de 1970 e 1980, justamente esse em que meu livro se insere com os espetáculos que eu encenei, seja como o dramaturgo, seja como diretor. A censura era institucional, nós tínhamos no Ministério da Justiça um departamento da Polícia Federal que se chamava Divisão de Censura de Diversões Públicas, o famigerado DCDP, juridicamente constituído que esteve estruturado com funcionários públicos pagos com nossos impostos para censurar a liberdade de expressão, para dificultar a livre expressão artística, censurando e proibindo obras. Existia também uma série de etapas que você teria que cumprir para que uma obra fosse colocada em cartaz, no caso do teatro, mas isso se estendeu a outras linguagens como a literatura, as artes plásticas, a televisão, o cinema. Todas as formas de expressão artística sofriam censura, então não era apenas uma questão de gosto mas de impedir a livre expressão com um aparato do Estado disposto para tal. Cada texto teatral era apresentado previamente para Polícia Federal que encaminhava uma cópia para uma equipe de censores que liam o texto. Era a primeira instância censória. Na verdade levávamos duas cópias, uma cópia ficava com a Polícia Federal e a outra onde todas as páginas eram carimbadas e rubricadas e entre a nós. Esta cópia deveria permanecer em nossas nãos durante toda a temporada do espetáculo, onde quer que apresentássemos a peça. Essa primeira etapa durava de 3 a 4 semanas e recebíamos uma primeira deliberação. Neste ponto

já havia uma classificação etária e uma justificativa da impropriedade. Por exemplo: imprópria para menores de 16 anos ou 18 anos. No livro eu apresento cópias destes certificados digitalizados. Mas o processo não se encerrava aí. Próximo da estreia nós marcávamos um ensaio geral para os censores assistirem. Após o ensaio era possível que se mudasse a classificação etária, que se fizessem novos cortes ou simplesmente a proibição do espetáculo e/ou do texto a partir da encenação. Emitido o certificado de censura nós deveríamos apresentar esse documento em todo o território nacional, mas isso não impedia de chegarmos em outra cidade, e ter que solicitar a liberação da censura local. No livro apresento um exemplo em Recife quando fomos apresentar o espetáculo “Até delirar”, e sofremos um novo processo censório. A censura de Pernambuco via os ensaios dos espetáculos mesmo que esses já tivessem estreados e sido liberados em seus estados de origem. Eles tinham os seus próprios critérios. Narro esta passagem e o encontro com os censores em 1984 em Recife. Olhando hoje isso parece tão absurdo, mas realmente aconteceu e tive que explicar cenas do espetáculo a partir do texto porque eles não poderiam ver o ensaio, pois havíamos chegado numa sexta-feira à tarde, senão eles não permitiriam a estreia. Esse caráter institucional é a maior diferença entre o que existe hoje de censura, que está muito motivada pela rapidez com que as redes sociais semeiam tanta desinformação e preconceito, em função de um neoconservadorismo, de um obscurantismo, onde se aliam uma representação política nefasta com determinadas correntes religiosas atrasadíssimas. Claro que isso é uma fonte imensa de censura, mas não é uma censura institucionalizada, não há um aparato estatal a serviço disso. Embora ultimamente peças foram impedidas de se apresentarem em centros culturais ligados a bancos estatais em função do conteúdo ou dos temas abordados. Sem dúvida que estamos assistindo a esse ensaio de retorno à censura então eu acho importantíssimo que iniciativas como essa, de um livro em que testemunho como convivi com este sistema, muito importante. Não é um estudo acadêmico sobre a censura é a narrativa em primeira pessoa de alguém que enfrentou um processo censório enquanto desenvolvia o seu trabalho artístico, então é para que jamais esqueçamos estes fatos e que não se repitam coisas absurdas como as que aconteceram comigo. E ainda muito pior com outros colegas meus que enfrentaram a proibição de seus espetáculos e o cerceamento à liberdade de expressão artística.

Eunoteatro- O teatro na época da ditadura militar passa por um processo de se reinventar. Podemos falar que atualmente vivemos esse mesmo processo? Como você vê as mudanças no teatro contemporâneo comparados à época em que as três peças, recordadas no livro, foram encenadas?

Paulo Atto- O fato de estarmos trabalhando num contexto de muita repressão sem as garantias dos direitos exercia uma influência gigantesca e isso se refletia obviamente nas obras, porque cada obra artística reflete em si o ethos de sua época. Quando você lança um olhar sobre esse teatro realizado nas décadas de 1970 e 1980 você percebe isso, como foi meu caso em “Até delirar”, praticamente um recital de poemas, que ali fica claro também o direito ao delírio, a necessidade de um espaço para o sonho, para a livre expressão, isso está

muito claro e era um praticamente um roteiro cênico sobre poemas. O artista termina respirando esse clima e transpirando as aspirações da coletividade. Havia de fato uma dificuldade imposta pelas instituições do estado, você tinha que lutar para fazer o espetáculo, para fazer com que ele chegasse ao público sem sofrer nenhum corte. Pensávamos em muitas estratégias, muitos recursos, para que a gente pudesse levar a obra adiante. Eu acredito que essa seja uma diferença fundamental comparando com o momento atual. Mas dá para perceber também que as obras começam a refletir um outro aspecto hoje que é o aspecto econômico. Está muito mais difícil fazer teatro no país, observe a proliferação de espetáculos solo, este é um desses sintomas. Eu mesmo montei um espetáculo solo, meu último trabalho que estreou em 2019 “A Travessia do grão profundo” (cujo texto recebeu o Prêmio Selo João Ubaldo Riberio na área de dramaturgia). Foi o primeiro solo que fiz na minha carreira que já vai completar já 40 anos em 2023. Não posso dizer que isso também não esteja determinado por uma questão econômica. Já encenei espetáculos com 12, com 15 atores, “A tempestade” de Shakespeare que tinha um elenco imenso, então a gente percebe que aumentaram as dificuldades e a questão econômica nos influencia também. Eu diria que hoje é um dos fatores mais complicados. A questão econômica e a perda de público para mim são fatores atuais muito determinantes. A questão do público é algo para ser investigado mais a fundo, porque tem várias razões, não é tão simples afirmar que é o streaming que tem afastado o público. Acho isso muito simplório. É uma questão mais complexa. Já fiz espetáculo de quarta a domingo em Salvador naquele período mais de 30 anos, tive espetáculo com cambistas e sucessivas sessões esgotadas tanto em Salvador quanto em São Paulo, como foi de Morangos Mofados, minha adaptação dos contos de Caio F. Abreu. Já meu mais recente espetáculo “A Travessia do grão profundo” ficou em cartaz aos sábados e domingos. Então essas condições de produzir o espetáculo hoje são muito fortes e nos influenciam muito. Acredito que essa reinvenção seja talvez caminhar para lugares onde já estivemos mais do que criar soluções. Essa reinvenção talvez seja buscar outras referências que temos. Percebo isso na dramaturgia em diversas propostas que refletem nossa diversidade.

Capa Livro – Paulo Atto

Eunoteatro- Conte-nos sobre como era burlar a censura.

Paulo Atto- Devo confessar que olhando hoje, passados mais de 30 anos, o que fazíamos chega a ser cômico, a gente até ri muito imaginando isso e a nossa coragem. Era muito corajoso esse enfrentamento que fazíamos frente a um sistema tão repressivo, autoritário e violento. Produzir uma criação artística convivendo com essa estupidez foi um grande desafio, mas também nos fortaleceu por outro lado enquanto criadores. Como tínhamos a presença dos censores no ensaio geral antes da estreia, este era o momento mais complicado desta relação, utilizamos todo tipo de estratégias para fazer com que o espetáculo fosse liberado sem cortes, porque as alegações eram muito absurdas indo desde temática complexa a conflitos psicológicos, bom gosto, temas impróprios, nudez. As alegações eram vagas e absurdas. E os censores eram muito ignorantes. Não tinham absolutamente conhecimento de nada, o que tornava o processo ainda mais complicado sem nenhum critério objetivo. Um de nossos artifícios era alterar o

Paulo Atto | Foto Divulgação

ensaio geral. Simplesmente modificávamos uma determinada cena no ensaio geral para os censores. Um dos exemplos foi em A Confissão, o ator não tirou a roupa como seria no espetáculo durante a temporada. Apressávamos uma outra cena, omitíamos alguma passagem. Fazíamos cortes de uma frase que a gente achava que era mais perigosa para não correr o risco de vê-la cortada do espetáculo. Eram muitas as estratégias, mas houve espetáculos de colegas meus que foram totalmente “proibidos em todo o território nacional” e que foram apresentados clandestinamente. A gente era convidado, tinha uma senha, o local era divulgado apenas muito próximo do momento da apresentação. Infelizmente não eram muitas apresentações, o público era limitado, mas foi uma forma de reagir, de resistir, de seguir em frente com nosso trabalho. E isso aconteceu em Salvador na década de 1980.

Eunoteatro– Como você acha que o registro histórico que Atto em 3 Atos & Memórias da Censura pode beneficiar os artistas contemporâneos?

Paulo Atto- Primeiro num país continental como o Brasil com uma imensa falta de respeito pela sua história, em que poucas iniciativas preservam a memória do que foi realizado, sobretudo desse período, estas iniciativas são importantes para preservar essa memória. Embora seja difícil traduzir hoje aquilo que aconteceu há tanto tempo, acredito que seja fundamental, sobretudo para as novas gerações que estão se dedicando ao teatro, e que não passaram por isso, que não têm a mínima ideia deste processo, fazer este alerta, oferecer este testemunho. Cada vez que a gente relembra esses fatos e os mantém acesos na nossa memória ficamos alertas para que não se repitam. É preciso estar atento e forte. Não podemos permitir que isso volte a se repetir.

Acredito que essa é seja a maior importância desse trabalho que vem sendo feito por mim e por outras pessoas também: preservar essa memória para evitar que isso se repita hoje, amanhã ou em qualquer tempo. Arte significa liberdade.

Paulo, muito obrigada pela troca! Seja muito bem vindo ao @eunoteatro, adoramos tê-lo aqui conosco. Até a próxima!

Siga Paulo Atto no Instagram: @pauloatto

Livro Atto 3 Atos & Memórias da Censura
Paulo Atto
298 páginas
Editora do Teatro Popular de Ilhéus
Preço sugerido:  R$ 50,00


Entrevista por : Thamiris Dias @thamiris.dias_

Assessoria de Imprensa: Adriana Balsanelli @abalsanelli

imprensa@adrianabalsanelli.com.br

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