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Em diálogo com a madrugada que habita tudo que existe (a madrugada insone dos nossos tempos!), Wander B. se lança em direção ao inferno — e o inferno (por incrível que pareça!) não são os outros, como pensava Sartre, mas um velho espelho da borda laranja.
Trata-se de uma solo-performance criada para o teatro digital. É de dentro do seu quarto no Bixiga, bairro tradicional paulistano, que o artista se lança em direção aos sentidos de todas as pessoas que decidirem compartilhar dessa experiência. O teatro de Wander B. é profundamente vinculado à filosofia do Teatro Essencial, criado por Denise Stoklos — “onde apenas o vivo, a energia vital, a força de sobrevivência do humano se estabelecem como base do teatro” (Denise Stoklos, maio de 1988; texto presente no livro Teatro Essencial, lançado em 1993). A peça teve sua pré-estreia em outubro de 2020, ficou em cartaz de forma independente durante todo o mês de novembro e teve sua última abertura do ano nos festival Satyrianas. Já chegou em pessoas espalhadas por todas as regiões do Brasil, ao todo 16 estados, além de brasileiras e brasileiros que vivem fora do país, espalhados pela Europa e pelos EUA. Agora em 2021, começa o ano em cartaz em parceria com a SP Escola de Teatro, fazendo temporada às quartas e quintas de janeiro, sempre às 20 horas.
Teaser da peça:
Eunoteatro – A peça “O Inferno É Um Espelho da Borda Laranja” nasceu em berço digital ou já foi apresentada no Teatro físico? Você já se considera adaptado a essa ideia do digital, como foi esse processo?
Wander B. – A peça foi concebida para o teatro digital. É uma peça com pouquíssimos recursos tecnológicos, não uso cromaqui, dispenso os grandes aparatos, a verdade é que eu uso a câmera do laptop e a lanterna do celular como fonte de luz, ou seja, um teatro de guerrilha, um teatro só com o que é essencial, a verdade é que tento fazer o mais analógico dos teatros possíveis no mundo digital. Mas ainda assim, quando voltarmos aos espaços de encontro físico, terei um grande trabalho para adaptar a peça, isso porque essas únicas duas tecnologias usadas, a câmera e a luz, foram usadas de maneira muito particular: eu exploro muito os enquadramentos, faço planos cinematográficos, uso a tela como uma moldura e trabalho dentro dela como se fosse um quadro, ou um espelho talvez; a luz também tem muitas sutilezas, uma vez que eu opero tudo com as pernas e o quadril, fazendo recortes que são mais difíceis de fazer no palco: quem já viu sabe do que estou falando, quem ainda não viu, verá: a luz da peça é meu atestado de loucura! Bom, tendo dito tudo isso, acredito que sim, estou adaptado à ideia do teatro digital, o meu grande receio era a falta de olho no olho com a plateia, isso faz falta, eu sempre tive uma relação de muita proximidade com a minha plateia. Mas vou dizer algo que tenho dito às pessoas no final de cada apresentação: ao longo desses meses, desde a pré-estreia em outubro, passando por toda a temporada em novembro e finalizando o ano no festival Satyrianas em dezembro, em nenhum minuto sequer eu me senti fazendo teatro para as paredes do meu quarto. Eu me sinto conectado com as pessoas, eu não as vejo, mas sinto a presença de forma intensa – acredito que o grande desafio do teatro digital é criar um espaço de intimidade para que a coisa fique viva: o teatro é a arte da coisa viva!
Eunoteatro – Wander, estou curiosa para saber, qual o significado do nome, “O Inferno É Um Espelho da Borda Laranja”?
Wander B. – Olha, foi difícil batizar essa peça, dar o nome à coisa. Vários nomes foram pensados até eu me decidir por esse nome com ajuda de Elenice Zerneri, dramaturgista da peça, que me ajuda muito nesses momentos de dúvida. Eu já estava ensaiando há meses, já tinha me programado para abrir o processo para o público, e tinha três nomes na cabeça. Um deles é este. O que eu posso dizer é que o “espelho da borda laranja” não é um ente metafísico, é mais simples, é aquele espelhinho que tem na casa de muita gente, inclusive aqui na minha casa. Essa peça é o primeiro trabalho meu que recebeu atenção do mundo acadêmico nesses meus 20 anos de carreira: no final do ano passado, em um seminário internacional realizado pela Universidade Mackenzie em parceria com a Università Degli Studi di Genova, a diretora teatral e historiadora do teatro, Dra. Amanda Steinbach, apresentou uma fala sobre o meu trabalho que, acredito, responde bem essa pergunta: o espelho da borda laranja é baratinho e é vendido em qualquer loja popular, está ao alcance de todos. Talvez seja isso, talvez. Talvez eu esteja te convidando a visitar seu próprio inferno a preços módicos.
Eunoteatro – Para Sartre, “o inferno são os outros”, para Karl Marx, “o inferno está pavimentado de boas intenções”. E você, a qual inferno se refere?
Wander B. – Ah! Que coisa curiosa… Olha, Sartre é um dos autores que mais li, apesar de ter grandes embates com ele, sobretudo no que diz respeito às coisas materiais que nos afetam e, acredito, determinam grande parte das nossas escolhas. É uma discussão que não cabe aqui, mas que existe. E quando digo que tenho embates com Sartre, não quero dizer com isso que estou com a razão, mas sim que preciso ler mais o autor e também os seus críticos: é uma treta amorosa. “Entre quatro paredes” é uma de minhas peças favoritas e a frase “o inferno são os outros” é uma daquelas frases que o Sartre escreveu para que no futuro tatuássemos em nossos braços: é uma frase incrível! Em minha peça, o inferno é um espelho – não sei se estou confrontando Sartre, uma vez que podemos entender que o outro é também um espelho. Já Marx, eu li menos. Li também. Sigo lendo. Mas li bem menos do que Sartre. O curioso é que em minha peça também se lida com a ideia de um inferno pavimentado de boas intenções: “O amor me diz que sou ridículo. Me diz que apesar das minhas boas ações, das minhas boas intenções, eu me tornei uma nota de rodapé ridícula em uma página ainda mais ridícula de A História, assim com maiúsculas”. É possível, mais que possível, é provável, que Sartre e Marx estejam, sim, discutindo comigo nessa noite insone e sem fim que é a minha peça.
Eunoteatro – O texto traz influência do que temos vivido durante a pandemia?
Wander B. – Acredito que a peça tenha, sim, grande influência do que estamos vivendo durante a pandemia, dificilmente se escapa da influência de algo tão grande, mas não enxergo o texto como algo circunscrito à pandemia, infelizmente… As questões que movem a peça são tormentos que já me acompanhavam antes da peste e, acredito, seguirão tirando o sono de muita gente depois da vacina. A peste é um evento, é mais um problema dentro de uma sociedade que não vai bem: uma sociedade pautada em desigualdade social que vende ideais-de-eu muito elevados, o que resulta em um mundo que oscila entre ansiedade e depressão. Olhemos para os números da OMS, o Brasil toma ansiolítico como se fosse Neosaldina! A venda do sucesso, que é a venda do fracasso, que é a venda de ansiolítico, é uma tônica da peça. As afecções da alma política do mundo é outra questão da peça. A lógica de vida baseada no consumo insustentável também está em discussão neste trabalho… Ou seja, esse inferno que eu discuto não fecha suas portas com a vacina que tanto esperamos, infelizmente…
Eunoteatro – Além de estar em cena, você assina não só a dramaturgia como também a iluminação e direção. Isso é uma necessidade exigida pelo teatro digital, ou você aproveitou a oportunidade para desbravar outros caminhos na concepção de um espetáculo? Acha que o artista do futuro vai precisar estar cada vez mais envolvido e imerso em suas próprias criações, se tornando um artista cada vez mais multifacetado?
Wander B. – Foi uma necessidade e, ao mesmo tempo, uma oportunidade de mergulhar com tudo, radicalmente, naquilo que eu mais acredito: o Teatro Essencial. A verdade é que isso sempre movimentou os meus trabalhos, mesmo quando eu estou trabalhando em grupo, com equipes maiores, eu sempre tento extrair daquele trabalho o que é essencial. Aquilo que é apenas enfeite não me interessa. Se um elemento cênico (figurino, luz, cenário, sonoplastia) é só decoração, vitrine, não me interessa. Nunca me interessou. Essas coisas todas podem estar em cena, mas elas precisam ser mais do que mero enfeite, precisam ser essenciais para que a peça aconteça.
Eu sou um artista de cidade pequena, minha carreira começa em Barra Bonita, interior de São Paulo. Sempre trabalhei com baixíssimos orçamentos, muitas vezes sem grana nenhuma pra ser sincero… Foi assim que eu caminhei duas décadas de arte! Cortando estradão de ônibus Brasil adentro. São espetáculos que cabem dentro de uma mala. Se possível, um espetáculo que cabe dentro de um bolso. Melhor ainda um espetáculo que não precisa nem do bolso. Esse é o teatro que me foi possível, mas é também o teatro que me atrai e me interessa esteticamente e politicamente. O teatro que eu acredito ser o teatro mais democrático, o teatro que está ao alcance de quem quer fazer teatro e não tem grana.
Eunoteatro – Sei que você é um grande admirador de Denise Stoklos, agora quero saber, como isso te influenciou na criação da peça?
Wander B. – Sim. Sou admirador e aluno de Denise Stoklos. Tudo que eu disse na resposta anterior, diz respeito ao teatro de Denise: o Teatro Essencial. Costumo fazer o seguinte paralelo: algumas pessoas tiveram a chance de estudar o Teatro Épico com o próprio Brecht; outras tiveram a chance de estudar a dança Butoh com Kazuo Ohno; há ainda quem tenha estudado a psicanálise com o Freud ou o existencialismo com o Sartre… São oportunidades raras na vida de uma pessoa! E quis a vida me presentear com isso: estudar o teatro que eu mais gosto com a pessoa que criou esse jeito de pensar e fazer teatro! Quis o destino que essa pessoa fosse uma mulher do meu país, uma pessoa que fala a minha língua e vive no mesmo tempo em que vivo! É assim que eu olho pra Denise Stoklos. É com esse respeito. É com essa gratidão. É com esse amor. É com essa admiração… (eu ficaria aqui horas falando sobre isso…). E, respondendo a pergunta, tudo que eu faço tem influência de Denise Stoklos. Essa peça, particularmente, pela radicalidade da pesquisa, eu devo totalmente a ela.
Eunoteatro – Você está iniciando uma temporada pela SP Escola de Teatro. Conte- nos qual a importância desse espaço para você e para a cultura Paulistana?
Wander B. – A importância é imensa. Imensa. Veja, estou fazendo temporadas online, digitais, ou seja, não estou em cartaz no palco da SP Escola, usando a estrutura física da escola, as salas, os refletores, as caixas de som, os assentos para acomodar meu público: uma estrutura incrível que a SP Escola de Teatro possui, duas sedes maravilhosas na cidade de São Paulo, mas que infelizmente não podemos utilizar agora nesse momento pandêmico. Então qual seria a razão de fazer uma temporada pela SP Escola de Teatro se me apresentarei aqui do meu quarto no Bixiga como já fiz em 2020? Simples: juntos somos muito mais fortes. Juntos podemos chegar em mais pessoas. Nós precisamos disso. A classe teatral precisa se unir, se fortalecer… Um exemplo: um festival de teatro online, precisa? Precisa! Ele fomenta encontros do mesmo modo que um festival tradicional. Outro exemplo: fazer uma temporada da minha solo-performance no palco digital de um grupo de Salvador, faria sentido? Faria! Faria muito sentido! Seria a união do meu público com o público desse grupo. É uma forma de trabalhar em rede! De fortalecer a classe como um todo… Parece que grande parte da nossa classe ainda não entendeu isso, nós estamos acostumados com a ideia de que uma turnê só pode acontecer indo fisicamente nos lugares, mas não, eu posso estar em cartaz em um teatro digital de um grupo de Curitiba, dialogando com o público desse grupo, ao mesmo tempo que dialogamos com o resto do Brasil, com o mundo. O festival Satyrianas foi um super exemplo disso, eu participei do festival e recebi aqui no meu palco-cama-digital as pessoas que estavam perambulando pelas salas virtuais do festival. Isso é possível. Isso é bom pra toda gente de teatro!
Eunoteatro – Nós do Eunoteatro lhe agradecemos por está entrevista!
Redes Sociais Wander B.: @_wanderb
Crítica por Marcio Tito – o inferno é um espelho da borda laranja
como não ser óbvio quando a tradição está presente no trabalho e, sobretudo, quando o trabalho claramente deseja a tradição no centro da roda? como sobrevoar as referências e instaurar o seu próprio tempo-espaço teatral? simples: basta tornar-se uma figura autêntica e selvagem como o protagonista de O inferno é um espelho da borda laranja.
a compulsoriamente cênica figura de Wander B é quem nos lança no espaço entre a tradição da cena solo e a revisão de todas as cenas solo que já assistimos.
o estilo anacrônico da encenação, que inscreve Wander num sem-tempo da arte de todos os tempos é uma máquina para produzir lugares dentro de um foco de luz.
esse rosto palavra que diz cenas é, dentro da inteligente e econômica linguagem configurada pelo artista, um texto rosto que anuncia um conjunto teatral.
foi sem licença tua que disparei esse comentário formalmente incomum, pois é sem licença que também Wander nos inscreve em um nova dimensão – lúdica sem ser psicodélica, na tela e sem flertar com uma dissimulada adequação audiovisual.
a orquestração da luz revela um artista obsessivo. e a dinâmica vocal é tão brilhante quanto essa luz que merece préstimos e análises mais demoradas.
sem pecados, e cheio de decisões, Wander avança. Faz teatro porque não esconde a teatralidade.
(peça digitalizada, quando boa, parece quadro que fala e dança. o Inferno desse artista é um baile cheio de línguas então).
entre o italiano Caravaggio e brasileiro Junior Santos, quase voz e violão, Wander é todas as Denises Stoklos e nenhuma delas.
apropriado e também liberto, Wander é o cheiro de palco nessa tela luminosa.
Marcio Tito é diretor, dramaturgo e editor de arte no site deusateu.com.br
Redes Sociais: @marciotitop @deus.ateu
Serviço:
Espetáculo em parceria com a SP Escola de Teatro
Acesse os ingressos de todas as apresentações:
https://www.wanderb.com/agenda
Ficha Técnica:
Dramaturgia, direção, luz e performance: Wander B.
Dramaturgismo: Elenice Zerneri
Teaser e cartaz: Jezz Chimera
Espetáculo em parceria com a SP Escola de Teatro