DESAMPAROS – Crítica por Marcio Tito

DESAMPAROS – Crítica por Marcio Tito

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A Coragem da Fé
sobre o amparo da forma

Por Marcio Tito.

Cléo De Páris, reserva moral cênica do teatro que se faz desde os anos noventa na Praça Roosevelt, tradicionalmente capaz de dignificar pequenas e grandes produções, e naturalíssima herdeira das grandes atrizes que fundaram o mito daquelas artistas, estelares, e cujas personalidades irrompiam do íntimo de suas vidas privadas ao centro dos espaços cênicos aonde interpretavam as suas grandes personagens, “adeliapradamente”, desde o dia 31 de março, junto ao ator e diretor Fábio Penna, cartografou e ainda cartografa há meses o novo território do teatro (o não só virtual, como também online, polêmico e performativo: Teatro Digital).

Essa experiência, se vista bem de perto, não foi uma produção surgida de alguma intuição “sem pai nem mãe”, e, boa parte do meu raciocínio estará posto na direção de orientar o leitor através de algumas referências biográficas que poderão alimentar melhor a “highway” desses artistas até então.

Desamparos: cronológico-cênico e digital acerca dos tempos da vida de um espírito feminino e fêmea, “aparece” enquanto consequência ideal para uma pesquisa centrada no debate profícuo entre o desejo de dizer e as formas que ainda podemos inventar para dizer as coisas que o desejo nos exige.

Fábio Penna, responsável por parte da direção do clássico interativo Hipóteses para o Amor e a Verdade sempre nos entregou um teatro quase nunca capaz de obedecer aos limites da caixa preta, da interpretação “produtificada” e do teatro enquanto experiência apenas “intelectual”.

Em uma outra forma de conduzir experiências cênicas, o diretor já havia proposto há quase uma década um estranho trabalho bastante alternativo: o pouquíssimo festejado, mas profundamente investigativo e conectado ao tempo-espaço do teatro brasileiro daquele período: Cemitério dos Elefantes.

Esse trabalho se estabeleceu como experiência cujo centro nervoso estava posto na renovadora dimensão de um teatro aonde público e atuadores se viam vertiginosamente inscritos em um labirinto formal e arquitetônico, proposto dentro do Espaço dos Satyros 2, ainda antes da reforma total, que teve como espetáculos marcantes Julliete e Pink Star, de Rodolfo García Vazquez (com a Cia. Os Satyros.)

Vamos unir, juntos, então, as partes dessa estranha radiografia do teatro paulista…

O itinerante Cemitério dos Elefantes em muito lembra a itinerância espectral da atriz em Desamparos, enquanto o tom confessional e performativo de Cléo é de fato siamês a outros objetos cênicos que a atriz já vinha desenvolvendo em trabalhos como Nosferatu, A Nossa Gata Preta e Branca, Laura Diz Para Seu Irmão, Surtai e Encenai e, ainda mais no passado, as suas icônicas cenas autorais em Cabaret Stravaganza e Édipo na Praça, também com os Cia Os Satyros, e também com direção de Rodolfo García Vázquez.

Toda essa orquestração entre os estertores criativos que foram surgindo e se apagando no contexto de produções situadas entre os espaços dos Satyros e outros espaços, encontra agora a prerrogativa da falta e, diante de um tempo cuja exigência nos sugere a sublimação do impossível, toda a confissão de Cléo, de modo adequado, encontra a deriva apaixonadamente experimental e sensorial do teatro obrigatoriamente digitalizado.

Fábio Penna nunca deixou de representar com o seu teatro o desbunde oitentista e uma tal estética noventista “geraldthomaziana”. Assim, sempre trouxe para o palco o que há de mais vivo nos trabalhos que não participam ativamente do mercado cutlural (financeiro) e, também por isso, tão século XXI, logo, faz aparecer agora em Desamparos, por resultado da pesquisa que orienta, e por força material da época, um trabalho fantasmagoricamente e indiscutivelmente “urbanopata”, e crítico dessa mesma “urbanolatria”.

Este breve vocabulário de intenções acerca do trabalho da dupla tem como objetivo, não amparar teoricamente ou historicamente o espetáculo Desamparos, mas apontar vestígios criativos que parecem culminar no corpo denso desse trabalho importante e não parido do repente dessa época somente, como pode parecer para um ou outro transeunte dessas desconfortáveis vias “públicas” e digitais.

Muitos de nós, artistas, nos pusemos diante da emergência da hora, e nessa atmosfera de resiliência e sacerdócio, também porque “kamikazes”, lançamos os nossos calores criativos rumo ao desconhecido do teatro digital (bem como nos pusemos diante do inédito e ainda desconhecido “gosto” do “público” digital.)

Todos nós, porque sobressaltados, ativamos os nossos geradores e deixamos online o refletor da nossa intuição, assim, nesse contexto, tão perdidos quanto os espectadores, jamais poderíamos prever quem é que transformaria o próprio trabalho em uma fisionomia primeira e “final” para essa tão convulsa hora do “teatro”.

Ousadia, hora certa e “lugar digital” certo concederam para a dupla o status de Live mais notada, mais prestigiada e mais aclamada no final dessa segunda década do século 21 na minha mais do que restrita bolha facebookika.

Embora o trabalho não seja “originalíssimo”, até mesmo porque o inédito que se apresenta enquanto inédito, quase sempre, é apenas um modo obsceno de valorar algo, o trabalho é Novo e arejado, sem cair na canalha armadilha do
obrigatoriamente “singular”.

Ao sabor da experiência de quem vê, o espetáculo termina por deixar nesse tempo do teatro um registro de fé na forma e resiliência criativa perante o inusitado das mídias.

“Coragem” não é um valor eternamente paralisado no sujeito, pois o corajoso não é sempre obrigatoriamente e corajoso ao mesmo modo. Este é um valor mutável e que compõe a determinação de um sujeito renovadas vezes, diante de renovadas circunstâncias e apoiando-se sempre em uma reordenada motivação diante do perigo.

A dupla pode ter sido sempre esteticamente corajosa, mas, nesse trabalho, a coragem renovada é uma terceira margem para a coragem de sempre e que confirma também a linha consequente de suas primeiras pesquisas, mais ou menos, continuadas e interrompidas.

Cléo, corajosa, trazia estes Desamparos em um blog (quando os blogs eram novidade, e mais novidade ainda era o seu modo de habitar sintaticamente o espaço uol).

Cléo trazia textos de autora quando estava consolidando a sua experiência de atriz. E Fábio Penna sempre trouxe o seu teatro enquanto coragem diante de formas “mais bem acabadas” ou mais “tradicionalmente embaladas e chanceladas”.

Agora, autorizados pelo tempo das coragens conflitantes, finalmente, numa união perfeita entre uma coragem e outra, confirmam diante do público o que é que se faz com a coragem quando o medo vem.

Com a coragem, na hora certa, organiza-se o presente (porque o futuro ainda nos interessa). Com a coragem, afirma-se que o passado sempre foi ensaio (nunca um acidente qualquer). E com a coragem, ampara-se enquanto forma o desamparo enquanto alma.

Até então, com a aceitação do público, constância e relevância midiática, foi a dupla que pareceu ter primeiro compreendido que o teatro digital só é teatro quando se põe entre o presencial e o tecnológico, para fundar então uma experiência espiritual, entre o concreto do palco, o distópico do facebook e uma arte possível apenas aos artistas cuja dedicação está em não dormir profundo enquanto o mundo escurece…

Sem grandes adequações tecnológicas. Sem grandes véus. Sem a estranha necessidade da quinquilharia digital de outras plataformas que poderiam sim oferecer “mais” equipamentos cênicos, a dupla, como dois desabrigados, fez aquilo que o teatro há anos nos diz que é teatro. Um texto. Uma acesso absolutamente facilitado. Uma emoção. Um movimento pensado e uma iluminação narrativa.

Antes de tudo e de todos, já um pós teatro digital e um pré-teatro pós presencial – O teatro espiritual, nascido do desejo e da falta, do amparo e do desamparo da forma…

“Duchamp se tinha, no fundo, como “o último artista”, aquele que já perdeu os seus instrumentos de expressão mas ainda insiste em expressar-se.”
Frase final do ensaio “Fim da Arte”, que está contido no livro “Argumentação Contra a Morte da Arte”, da obra do crítico e poeta – Ferreira Gullar.

Serviço:

Toda Terça às 21h no Instagram @cleodeparis

Redes Sociais:

Divulgação

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Renata Garcia
Renata Garcia
4 anos atrás

 

Last edited 4 anos atrás by Cíntia Duque
Deise Garcia
Deise Garcia
4 anos atrás

Trabalho primoroso!!!!