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Marcio Tito é dramaturgo formado pela SP Escola de Teatro –
Atualmente, é editor de cultura e arte no site deusateu .
E também Diretor de seu Coletivo Tragédia Pop e mantém em cartaz o projeto “Tragédia Conta Quarentena”.
✋Um breve resumo sobre a origem desta entrevista…
Marcio e eu, somos amigos. Aquele tipo de amizade que somente os tempos modernos são capazes de proporcionar: a virtual.
Nos conhecemos através de uma pesquisa, numa época em que eu procurava uma parceria para o @eunoteatro. Henrique, um de seus sócios, foi quem encontrou o post deixado em uma pagina do Facebook e entrou em contato. Posteriormente, passei a falar com Marcio pois os assuntos relacionados à Arte e Teatro, são tratados por ele. A partir de então, passei a ter conhecimento e apreciar o trabalho incrível que ele faz também fora do DeusAteus e resolvi entrevistá-lo. Ele aceitou e aqui esta a nossa conversa!
Aprecie sem moderação! 😉✔
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EUNOTEATRO – Quando foi que tudo começou pra você? Quando foi que você se percebeu artista?
Você se lembra qual foi o primeiro poema ou a primeira coisa que escreveu?
Marcio Tito – Eu comecei no teatro aos quinze ou dezesseis anos. A minha família passou a organizar algumas ideias sobre mim e então “ser ator” surgiu como uma possibilidade para o meu futuro, porque até então eu dizia coisas muito vagas e não organizava nenhum dos interesses que parecia ter.
Eu estava um pouco alheio, não havia pensado sobre. Jamais havia cogitado trabalhar com qualquer coisa que me exigisse representar. Raciocinava sobre o direito ou o jornalismo. Gostava de pensar e escrever, mas nunca havia me imaginado comunicando as coisas através da minha sensibilidade.
A primeira peça que vi foi O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, anos depois eu fui saber que era do Grupo Tapa. Acho que depois dessa experiência, voltei a pensar teatro só mesmo quando fui estudar ou, talvez antes, quando vi Guilherme Weber fazer A Educação Sentimental do Vampiro, mas não tenho muita certeza.
Bom, não me lembro se já estava estudando teatro quando vi essa peça… Sobretudo, foi o meu pai quem imaginou o teatro e a televisão como um lugar aonde eu pudesse aplicar as qualidades criativas da minha personalidade, embora a minha mãe também tenha achado boa condição essa de ser ator.
Mas foi o meu pai quem primeiro sugeriu e eu me lembro de não ter sentido paixão alguma, embora não estivesse nada avesso àquele universo. Ingressei na escola de atores Wolf Maya. Lá, no primeiro ano, tive professores incríveis que, além de grandes mestres, eram também grandes artistas que atuavam e atuam na cena.
Jair Assumpção, Alberto Guzik, Sandra Corveloni, Zé Henrique De Paula, percebe? Seria preciso ter um excesso de pouca vocação para não me perceber artista perante essas referências máximas dentro do nosso teatro. E enquanto os meus colegas tomavam suas acertadas decisões de mercado, eu cometia todas as gafes possíveis.
Não se pode ter uma carreira na televisão quando você acaba achando que todo o processo social da tv é uma contrariedade ao teatro, e foi aí que me detive em imaginar uma carreira produtiva nas artes cênicas. E isso foi uma bobagem, que se revelou bobagem justo agora na pandemia, aliás.
Hoje não tenho problemas com a televisão, porque sobretudo entendo que os processos culturais devem ser mais admirados do que as pequenas formulações, quero dizer, pouco se muda em um país quando se produz algo restrito, que deseja ser restrito, e que precisa ser restrito para salvaguardar sua essência frágil e quase oca, logo, hoje, penso que essas áreas se completam. A tv depende da profundidade e credibilidade do teatro, o teatro depende da elaboração macro própria da televisão.
Agora, na oportunidade da pandemia, redescobri o meu trabalho. Não sou um homem de teatro, sou um homem das artes cênicas. O teatro como se pode entender o teatro dentro da gramatura de uma segmentação comercial, para mim é uma grande bobagem tão desinteressante quanto uma reserva de mercado qualquer.
Quem quiser fazer teatro, faça. Eu sou um sujeito que prefere organizar símbolos, em qualquer contexto. Me sinto dramaturgo, diretor, artista plástico, ou qualquer coisa que exista para legendar as emoções do mundo.
Tudo isso é expressão social e cultura, e enxergo que o teatro está abaixo dessas coisas, entende? O teatro não pode existir para negar a materialidade da cultura, seja lá em qual dinâmica! O teatro, se limita algo, é menos teatro para mim.
Com muito orgulho dirigi uma Live Cênica e edito um site de arte e cultura, o Deus Ateu. Quero dizer que essas fronteiras borrei há algum tempo, escrever sobre arte, dirigir no espaço digital, escrever uma peça com atos, para mim, é a mesma coisa.
Existe a arte, existe a cultura que distribui a arte, e existe o teatro, e o teatro que é uma “casinha” dentro da arte. O teatro é fundamental e insubstituível, mas não é nem de longe um esquema que deve estar preservado. Acima, quando encarei o teatro, eu provoquei. Não acho que o teatro esteja abaixo, mas gostaria que o teatro, quer dizer, as pessoas de teatro, pudessem ser mais híbridas do que são.
O teatro precisa ser um ato de partilha, Um lugar de partilhas.
A primeira coisa que escrevi fora da escola, de modo a querer expressar algo do mistério de ser gente diante das palavras, foi um poema. Achava incrível usar as palavras de modo que elas dissessem o que não estava de fato escrito. Esse encantamento surgiu quando li O Bicho, de Manuel Bandeira. Foi ali que percebi qual coisa no mundo poderia realizar plenamente o meu desejo de ser alguém.
EUNOTEATRO – Sempre que leio textos/poemas seus, observo na sua escrita uma certa agressividade. Não é uma escrita com palavras doces nem mesmo quando fala sobre amor…
De onde vem essa acidez? Roberto Piva é uma inspiração?
Marcio Tito – Acho que todos nós temos poetas sob medida. Quero dizer, algum dia você sempre encontra aquela pessoa que escreve sobre aquelas coisas que você sentiu e não soube dizer. No meu caso, por me perceber nesse caos de sentidos e símbolos, paulistano até dizer chega, o Roberto Piva é o meu exagero afetivo em forma de poema.
Roberto Piva é o autor que ainda descobriremos coletivamente. Muitas frases do Piva deveriam substituir o nosso “ordem e progresso” da bandeira.
Os meus textos tem algumas determinantes, a violência não é uma delas. Apenas penso em impressionar os meus ídolos mortos, sobretudo os mortos. Escrevo como quem espera o aval de Murilo Mendes, Roberto Piva, Hilda Hilst, Nelson Rodrigues e Cecilia Meireles. Como estão mortos, penso que é preciso escrever qualquer coisa que venha a ferir de faca o tecido do real e do impossível. A minha voltagem é essa, espiritual e elétrica. Minha poesia é sempre um atentado contra a realidade, uma sedução do proibido, do impossível.
Bom, é uma violência sem sangue, uma violência das vísceras. Não quero que ninguém se ofenda ou fique ferido com as coisas que escrevo, quero que, sobretudo, as pessoas se percebam postas em um ângulo desconfortável.
Violência é uma coisa muito da vida, e os meus poemas são feitos para serem sonhados. Meu trabalho é uma constante negação do real, da estabilidade, do sono quieto. Isso, não são violentos! São instáveis. São melancólicos e festivos.
EUNOTEATRO – “O artista imprime em sua obra tudo aquilo que pensa ou vive…” (A.D) Você concorda com esta premissa?
Marcio Tito – Não é uma premissa que esteja correta em sua natureza, se pensarmos qual a ciência da produção de uma obra de arte. Se a arte precisasse imprimir no espaço o que o artista pensa ou vive, teríamos obras que nem precisariam ser obras, pois bastaria que fossem ideias ou sentimentos apresentados em uma psicanálise assistida por uma plateia.
Arte pressupõe Partilha, mas partilha criativa e organizada. Uma obra é uma revisão de si e do outro, em um só projeto de concepção que buscará unificar ou significar o vazio da existência do outro, ou o vazio entre as existências de quem fez e de quem viu o que foi feito.
Uma obra nunca deixa de sair suja das secreções do artista, pois primeiro ela existe dentro do sujeito e depois para fora das vísceras criativas do artista, e é por isso que as pessoas confundem revisão estética com legenda para a própria personalidade.
Isso é um falso sentimento. Você pode sim legendar as suas experiências, mas é preciso inscrever o desconhecido dentro disso, e o desconhecido é sempre o outro. Arte é quando o artista se obriga a comunicar o indizível para alguém desconhecido.
Então um artista e sua obra são exatamente isso – Algo que não se livra de si e precisa encontrar a revisão do outro sob qualquer custo, dentro dessa coisa inseparável que está cronicamente circunscrita no processo criativo.
Um quadro, por mais belo que seja, se posto em uma sala fechada e vazia, não é arte. O que torna arte uma determinada organização de símbolos é quando outro ser humano se mostra capaz de compreender racional ou subjetivamente o conceito daquela obra.
No vazio, ou na solidão, não existe arte possível. Existe somente o artista. Sem obra.
EUNOTEATRO – Em que momento da sua vida surgiu o Coletivo Tragédia Pop?
Marcio Tito – Estava em cartaz com a Cia Os Satyros e, no evento Satyrianas, todos os atores costumam apresentar trabalhos autorais. Fazia Satyricon, com direção do Rodolfo García Vázquez, e comecei a ensaiar para o festival.
Artistas incríveis entraram nessa comigo e o que seria um trabalho pontual acabou se tornando o embrião de uma coisa maior e mais bem organizada. Eu tinha algumas intuições sobre arte e, produzindo com esses artistas únicos pude apostar em realizá-las com maior rigor.
O nosso primeiro trabalho foi Roberto e a Filologia das Estrelas. Então é possível dizer que a Tragédia Pop é filha da minha obsessão, do encontro com a obsessão dos artistas que estiveram juntos nessa obra, de um contexto criativo que o Satyros sugere para seus elencos e, sobretudo, da generosidade dos Satyros que cederam, após a nossa estreia no festival, uma pauta para realizarmos a nossa primeira temporada.
O trabalho surgiu como algo tão sólido que o Rodolfo muito amorosamente me chamou a atenção para o fato que não havíamos percebido, e o acontecido era que, dentro da loucura de ensaios e da nossa seriedade com a coisa toda, não poderíamos mais assinar como um grupo dentro dos Satyros, mas sim como uma proposta coordenada por outros desejos e necessidades.
Sim, havíamos nos tornado um grupo com destino próprio. Foi muito especial a fala do Rodolfo nessa hora. Coisa de artista mesmo. Que percebe como é que as coisas são e como é que se pode fazer com que o tempo ganhe novos significados.
Então foi isso, rompemos a dimensão do experimento e nos tornamos um grupo.
EUNOTEATRO – Fale um pouco sobre o processo de criação de
“Roberto e a Filologia das Estrelas” e “Macumba Pop para Edward Snowden”. São suas queridinhas?
Marcio Tito – Naquela época, 2012, todos tínhamos um sentimento que nos dizia que o mundo iria acabar, acho que era alguma previsão de Nostradamus! rs.
A notícia corrente era essa. Foi uma época bastante intensa e enérgica, de muito experimentação e risco. Esteticamente Roberto era o deboche supremo, mas formalmente a coisa era outra. Como eu havia proposto que trouxéssemos toda a nossa simpatia jovem para dentro do fluxo criativo da sala de ensaio, as coisas foram se organizando quase como um hiperlink de internet.
Era tudo bastante rápido e frenético em cena. Os atores respiravam todos num mesmo tempo, eu achava muito importante deixar como registro que aquele deboche todo era um deboche sério, rigoroso, muito mais rigoroso que outras experimentações da época.
O desbunde precisava ter o peso de uma ópera, eu dizia. A peça, veja que maluquice, se passava no vácuo do espaço, e nela alguns alienígenas tomavam um dos artistas como exemplo para a humanidade.
Foi daí que tirei uma certeza criativa: é preciso levar cada proposta até as últimas consequências, e que tudo o que você insistir em criar será criado, desde que existam balizas fixas e complexas.
É um equívoco querer dizer apenas uma coisa com sua obra de arte. Então Roberto foi exatamente isso, uma explosão de símbolos organizados, um caleidoscópio cheio de regras e leis. Uma loucura bastante careta!
Snowden foi um trabalho completamente diferente, talvez tenha sido a minha única peça explicitamente “ideológica”.
Considero Edward Snowden como sendo uma figura central para resolvermos o século 21, se quisermos mesmo organizar as coisas por meio da boa fé.
Snowden é o nosso sujeito sagrado, um Prometeu da Era Digital, cidadão do mundo todo, como dizíamos na peça. Ele nos religa a algumas coisas que considero essenciais para a formação de sujeitos, sobretudo, complexos e capazes de tomar decisões.
Foi um trabalho assimétrico. Colocamos muitas coisas arriscadas em cena, era uma peça difícil e que não foi bem aceita, embora tenha sido o nosso maior sucesso institucional. Participamos de algumas coisas muito legais e as críticas foram sempre divididas, embora apaixonadas em seus dois extremos rs.
A nossa premissa foi divulgar o nome de Snowden no Brasil. Uma semana depois, na Broadway, em alguma fala de alguma peça algum artista citava Edward Snowden, em uma piada se não me engano, pois foi o que li nos jornais internacionais da época. Enquanto isso aqui no Brasil, um grupo pobre já colocava Snowden falando em primeira pessoa, quebrando a quarta parede e se apresentando no terreiro do Teatro Oficina.
Fiquei vaidoso naquela época, mas hoje eu sei que ainda devo técnica para esse trabalho, embora já não tenha a mesma fúria apaixonada que exibia naquela naquele tempo. Foi o meu trabalho mais importante produto, do ponto de vista científico, e o meu trabalho mais assimétrico, formalmente falando. Quero dizer, entregava muitas responsabilidades ao público, e talvez a nossa produção na época não tenha sabido atingir o público ideal.
EUNOTEATRO – Em uma de nossas conversas , você disse que: “Fundou o Coletivo Tragédia Pop em 2012 com a intenção de criar uma linguagem conectada ao dinamismo da época e que agora, a pretensão é responder ao que o tempo diz…”
Continua sendo assim?
O que os tempos atuais têm dito a você?
Marcio Tito – Naquela época, há oito anos, as fake News eram recém-nascidas e a internet ainda não participava de modo tão determinante das nossas relações, ao menos nas relações que eu vinha estabelecendo rs. A Tragédia Pop trazia muitas intuições sobre as coisas, e agora eu acho que estamos organizando mais suspeitas do que intuições de fato.
Em oito anos a minha dramaturgia tomou outros rumos e tem sido muito importante para mim criar mais espaços abertos dentro das obras. Naquele ano de 2012 eu era muito jovem e a minha carreira precisava ser confirmada, sobretudo, para mim. Eu não me via como um sujeito com qualidade o bastante, e hoje eu penso que a maior qualidade possível é saber organizar pessoas ao redor de uma ideia.
Arte é partilha, mas hoje na Tragédia o desejo é que a partilha seja horizontal.
Continua sendo assim sim. Embora acima eu tenha dividido as coisas, é preciso ser verdadeiro e assumir que formalmente a estética dos trabalhos se alterou pouco. Talvez eu tenha falado muito do meu sentimento de artista, mas o fato é que as cenas e os temas parecem circular ainda um mesmo modo de pensar o mundo.
Uma estética que salta aos olhos, uma forma de organizar a cultura segundo suas contradições e um desejo de que tudo isso se torne um clássico a seguir. A pergunta que mais fiz para os artistas que passaram pela Tragédia Pop foi – O que os clássicos estudariam de nós?
Acho que a coisa mais interrogativa dos dias de hoje para as artes tem sido sobre como as coisas estão mesmo em disputa. Ou eu envelheci e passei a perceber coisas nubladas para o jovem que fui, ou agora as coisas estão mesmo desgarradas da calma e atiradas sob seus desejos de modo atávico demais. Me parece isso. Tudo ao meu redor está em disputa. Os homens e as mulheres e os novos homens e as novas mulheres em disputa. O sexo em disputa, a verdade, o dinheiro velho e o dinheiro novo. A ciência. A detenção dos símbolos e da técnica. Assim que percebo. Disputas mais acentuadas e pulverizadas num sem fim de pequenas e grandes causas. É isso. E o futuro é o prêmio.
EUNOTEATRO – “DeusAteu” O que significa este nome e de onde surgiu a ideia de um site que reúne Psicanálise, Design e Teatro?
No seu conceito, qual a correlação entre os temas?
Marcio Tito – O Henrique Paes e o Guilherme Paranhos são dois sujeitos que pensam de modo singular sobre as suas áreas, respetivamente psicanálise e design.
É essencial para manter um processo criativo que, quem pensa e escreve, não abra nunca mão de uma certa radicalidade autoral que seja, sobretudo, capaz de pagar os débitos desse projeto. E ambos tem essa característica também.
Assim, quando percebi essa possibilidade criativa neles, e me considerando um artista cênico capaz dessa mesma coragem reflexiva e ativa, quando o site foi de fato surgindo, muito naturalmente nos unimos e nos reunimos ao redor da realização dessa intuição editorial
A ideia do Deus Ateu surgiu em uma conversa que não deveria ter existido. O Deus Ateu é carioca rs e nós, paulistas demais.
Estávamos no Rio de Janeiro, Henrique e eu, e ele em alguns momentos foi pontuando coisas da minha personalidade, e uma delas foi a minha megalomania… Dentro disso, comecei a brincar que chegando em São Paulo iria fazer um site muito diferente, cheio de gente falando de coisas que ninguém havia dito ainda. A Fernanda Montenegro nos apresentaria um ensaio sobre a poesia do Criolo e outras coisas estapafúrdias assim, por exemplo. Mantive que aquilo era seríssimo e que eu já tinha alguns contatos.
Claro, ele dava risada, mas entre uma e outra eu falava coisas mais concretas. Quando chegamos a São Paulo ele me mandou uma mensagem dizendo que o irmão dele havia gostado da ideia. O irmão dele é o Guilherme, e ele é um designer impressionante, que aliás já havia feito um trabalho fantástico em cima de uma peça minha, Nossa Senhora das Transexuais, que teve montagem da Cia Sem Censura, do Fabrício Castro que, além de meu amigo, é o diretor com quem mais trabalhei e com quem mais me entendo.
Bom, eu maturei a ideia e fui encontrar o Guilherme. Fiz uma oferta comercial e ele disse que toparia, mas que estaríamos juntos nisso. Foi tudo muito orgânico. Juntos, a seguir, construímos todo o projeto editorial. O Guilherme na editoria de design, o Henrique com a psicanálise e eu tratando do teatro. O Guilherme trouxe pra perto o Thiago Oliveira e, dentro desse contexto que já propunha que deveríamos ser modernos e propositivos dentro da cultura digital, o Deus Ateu tomou a forma que hoje tem.
O Thiago toma conta das nossas redes e estabelece essas ideias dentro das editorias também, não sei se isso é comum, mas programamos junto com ele os temas e a forma como abordaremos alguns desses temas e alguns entrevistados. Isso faz com que a coisa nunca fique empoeirada, eu gosto muito que estejamos assim, comprometidos em conectar essas três áreas por meio de dinâmicas próprias que não negam a velocidade dos algoritmos. O Thiago é como se fosse um editor geral, mas que não escreve (por enquanto).
É o “elenco” mais saudável em que trabalhei até hoje. São 3 sujeitos inteligentíssimos e que se completam e me completam também.
Deus Ateu… não faço a menor ideia de onde saiu esse título-porrada. Acho que foi porque eu estava de sacanagem com o Henrique… dizendo que a Fernanda Montenegro escreveria um ensaio sobre a poesia do Criolo, ou que o Caetano Veloso musicaria para o site uma narração do Galvão Bueno e aí, pra piorar, quis dar um nome controverso para essa mídia que receberia esses documentos rs. Deus Ateu! Como quem diz aquela coisa que termina de pontuar algum absurdo. Mas também acho que é o verso de um poema que escrevi e já perdi completamente. Mas posso dizer que não tem nada a ver com a música do Guilherme Arantes, que conheci depois e não gostei.
EUNOTEATRO – Conte-nos sobre o projeto “Tragédia Conta Quarentena”, fale sobre a concepção, objetivo, e como e onde ele acontece?
Marcio Tito – A Thais Grootveld havia me pedido autorização para gravar um vídeo com uma poesia que eu havia deixado no meu perfil no facebook. Ela é minha amiga há anos e juntos havíamos fundado a Tragédia. Dei até uma bronca nela por “pedir” rs, se ela queria, era dela, claro! Até por que ela faz vídeos muito interessantes e respeito bastante as escolhas estéticas dela.
E enquanto a Thais organizava a montagem e a gravação do vídeo, a pandemia se abateu sobre todos nós. Mandei uma mensagem perguntando se ela não gostaria de fazer a poesia ao vivo, em uma Live. Ela achou a ideia viva e passamos a conversar sobre.
Apresentei algumas coisas, mas nem sei quais, pois foi tudo sendo transformado por meio de um processo dialogado. Eu pensei a forma de ser live e de ser poesia, ela organizou todas as outras balizas do trabalho, ou talvez tenha sido o contrário rs.
Alguns grupos imediatamente estranharam fazer seus teatros de forma digital (ou seja lá qual nome que isso terá no futuro). Mas eu só percebi mesmo que havia entrado nessa quando já estávamos na quinta ou sexta apresentação, isso quando alguns desalmados começaram a dizer que aquilo não dignificava o teatro. O que me alertou de verdade para o fato foi a fala de um diretor que se pôs a falar umas bobagens conservadoras inacreditáveis!
Foi quando eu achei que o teatro, então, se não podia ser digital, estava abaixo de muitas coisas. E continuo achando isso. Teatro, por exemplo, do meu ponto de vista, mais ou menos como já disse, perde de longe para a expressão cênica em si, que independe de um prédio chamado Teatro. Teatro, pra mim, é um cnpj, um cep, e não essencialmente a forma com que a gente organiza estéticas no corpo de atores e nos panos dos cenários.
Eu sou artista cênico e é nisso que me inscrevo criativamente. Farei teatro com muito prazer, mas quando puder fazer teatro, que é a minha formação primeira. Mas não me importo de trabalhar fazendo arte em outras plataformas. Então a coisa foi indo assim.
Optamos pela meia noite porque somos boêmios e pensamos que os sábados seriam muito vazios para os isolados notívagos. Para mim, era impensável dormir cedo em um sábado, porque eu estava sempre por aí. Então pensamos que as pessoas poderiam substituir suas saídas noturnas, durante o isolamento, por uma live aonde tivessem algo para curtir.
A Thaís leva um drink, solta um som e lê algumas poesias que vamos organizando ao sabor dos nossos desejos. Não tenho nenhum mal sentimento quanto ao nosso trabalho. Acho digno. Belo. Sério. Coeso e capaz de resistir às mais diversas análises.
Acho também um grande trabalho da Thaís. Grande mesmo. Diria que esse trabalhou elevou o trabalho dela a um novo patamar. E é isso, para a Tragédia Pop foi marcante. Contribuímos com a nossa época, consolamos alguns insones. Dignificamos a arte do encontro. E tanto faz se é ou não é teatro.
EUNOTEATRO – Aproveitando, fale também sobre os seus projetos futuros…
Marcio Tito – Vendi os direitos de uma peça para uma atriz extraordinária e hoje estou muito focado no trabalho do Deus Ateu. Temos coisas em várias frentes. Podcasts acenam no nosso horizonte criativo, e quem sabe possamos organizar as coisas em outras plataformas também, estamos estudando algumas propostas e avaliando algumas ideias que tivemos.
Estou muito engajado em construir uma série de documentos para o nosso teatro. Acho que estou no meu melhor momento para isso. Não me sinto desorientado nessa área, aliás, pelo contrário!, pela forma como as coisas tem acontecido, talvez, quem sabe, eu tenha encontrado o que lutei anos para diagnosticar em mim – o meu lugar no processo formativo do teatro e da arte.
O Deus Ateu é indissociável ao meu futuro na arte. Hoje temos um capital de leitores que pode produzir muitas coisas concretas em termos de expansão das nossas ideias. Não sei bem quando essa entrevista será publicada, mas em três meses coisas inimagináveis têm acontecido dentro disso. Alcançamos uma coisa que jamais projetamos, temos contribuído com a inspiração de sujeitos que considero formadoras e formadores de opinião. Fomos citados no mestrado de uma pessoa, traduzidos para o espanhol (sem autorização rs), e agora soube que um trecho de um texto nosso será impresso em um livro importantíssimo sobre a história do teatro.
Deus Ateu é o meu desejo mais direto, para falar das novidades. No mais, até porque não tem como ser diferente, continuo escrevendo peças. Tenho um roteiro em fase de adaptação, estou organizando um volume de contos, minha contribuição nas lives persiste…
EUNOTEATRO – Qual a sua opinião sobre o cenário Pós Pandemia? Como será?
Marcio Tito – Esqueceremos. Será uma ruga coletiva, uma bobagem que superaremos quase sem ver, por conta da triste cicatrização que a economia propõe sempre depressa demais. Mas não penso que devesse ser assim. Sinto que logo, quando e se tivermos uma vacina que dê conta disso, em seis meses teremos deixado tudo isso no passado, sem aprendizado, e perdendo a grande oportunidade que tivemos para mudar.
Veja, se algo como a queda do World Trade Center não fez com que o povo americano deixasse de eleger um Trump, que é instável ao ponto de ofender qualquer um que o contrarie, ou seja, um terrorista verbal, como é que uma pandemia, dotada de um risco invisível, poderia ser eficaz na hora de transformar o nosso imaginário?
Alguém glorifica um torturador na câmara de um país que viveu tortura, e elegemos esse sujeito! Por outro lado, a epidemia do HIV fez com que uma geração inteira fosse apegada ao uso da camisinha, e agora, vinte anos depois do pico da disseminação e das mortes, jovens engravidam mais, e contraem mais DSTS.
O ser humano tem uma extraordinária capacidade de transmutação, mas tem também uma mais extraordinária ainda capacidade de tornar-se cego quando deseja gozar livremente. Então ficamos assim. Mesmo com a pandemia em curso as pessoas preferem acreditar em fakenews, a crer em prontuários médicos ou em estudos técnicos rs.
Mas eu não acho que seja ruim nada disso. Acho que é tudo parte da nossa narrativa coletivamente trágica. Não tem como pensar diferente, a nossa espécie terá sido a feliz e triste história de um animal contraditório e satisfeito em sua insatisfação intrínseca e solitária. Mas faremos teatro disso tudo. Sempre.
EUNOTEATRO – Marcio, chegamos ao fim e eu agradeço pela generosidade em dispor do seu tempo aceitando e estreando este novo espaço de entrevistas do @eunoteatro. Que você tenha sempre muita sorte e sucesso em sua caminhada!😉💚
Marcio Tito – Agradeço a sua prestação de serviço ao teatro. Agradeço o seu jeito simples de realizar as coisas e a forma cheia de afeto com que você promove o teatro. Acredito que hoje o teatro depende muito mais de você, que empresta a si para o teatro, do que aos intelectuais que, ainda que bem intencionados, acabam codificando demais as artes. Você tem uma verdade notável, um amor latente. Seu canal é um sucesso e conte sempre com o Deus Ateu, que ainda que seja fruto de uma experiência diferente, busca pela “mesma” forma de estabelecer as coisas. Obrigado por me procurar. Foi um prazer te dizer toda a verdade possível…
Até breve!
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Tragédia Pop
Um alívio que as ideias desse menino brotem no arder do asfalto. As perspectivas são as piores, exceto por isso.
Ótima entrevista!
Muito obrigado! Seu olhar é sempre mt gentil comigo, sua crença nas minhas crenças malucas é um átimo de luz. Obrigado!!! <3